Rosivaldo Casant

NÃO É SÓ PERU QUE SOFRE DE VÉSPERA
Os sinais da festa natalina estavam por todos os lados; diria que o mês anterior já trazia tais marcas

NÃO É SÓ PERU QUE SOFRE DE VÉSPERA
Os sinais da festa natalina estavam por todos os lados; diria que o mês anterior já trazia tais marcas. Há quem não goste desse período porque lembra uma situação de padecimento, de choque emocional, de alguma perda; enfim, por alguma razão bem-marcada ou não, há pessoas que preferem outras datas do ano para apreciar todo o clima de fraternidade que as cerca. Para mim sempre foi uma ocasião muito esperada. Quase sempre foi bonito de se ver. Podiam-se notar expressões de euforia nas ruas, nas lojas, nas casas multicoloridas à noite, pois a atmosfera do Natal é bafejada pelo calor dos trópicos, que convida a todos para bater pernas, de dia ou de noite; e não para montar bonecos de neve vestidos com gorro e cachecol do vovô. Eu estava naquela pegada bem brasileira.
Saí de casa e fui ao centro da cidade para comprar algumas coisinhas que faltavam em casa e encontrar um caixa eletrônico para tirar extrato da conta bancária e sacar algum dinheiro para as coisas miúdas do dia a dia, porque não se usava o cartão de débito e de crédito, como se utiliza hoje; pix? Não nos pertencia ainda. Segui pelas ruas centrais de São Bernardo do Campo. Como gostava e ainda gosto dessa cidade! Às vezes não nos damos conta do nosso entorno e deixamos de perceber algo sutil, mas que faz toda diferença para explicar por que ficamos tanto tempo num determinado lugar. Além dos enfeites tradicionais de época, pode-se observar uma silhueta urbana totalmente alterada nos últimos anos, com efeitos arquitetônicos arrojados nos novos edifícios. Embora na Grande São Paulo, tinha um não-sei-o-que de interiorana!
Cruzei ruas. Caminhei por calçadas úmidas. Algumas lojas já haviam baixado as portas e, aqui e ali, podia-se ouvir o estouro de algum espumante, muitos vivas e cumprimentos. Essa é a festa na qual muitos patrões se juntam aos funcionários, ou colaboradores, como se costumam se referir aos trabalhadores de uma determinada empresa; encarregados descolam-se do status do cargo e do rigor que a função cobra o ano inteiro e voltam a ser mais um dos tantos que ali estão para desejar boas festas e abraçar aqueles que, acima de qualquer coisa, são seus iguais na caminhada terrena. Gosto disso também.
Depois de muito caminhar, cheguei à agência em que tinha conta e saquei dinheiro. Então, iniciei o retorno para minha casa. Senti um vento gelado nas costas. A blusa que vestia não era para suportar um rigor maior de inverno, mas passou pelo teste do friozinho à retaguarda. Embora não fosse nascido na região do ABC paulista, residia havia algumas décadas ali e todo “batateiro”, como são conhecidos de forma humorada os são-bernardenses (e eu já me considerava um), sabe qual agasalho levar pelas incursões na cidade.
Da corrente fria de ar eu escapei, mas duas cenas enregelaram meu coração. Ao contrário do que possa parecer, o meu coração teve um choque térmico diante do que assisti.
Numa cena, vi um garoto feliz porque pedalava uma pequena bicicleta, infinitamente desproporcional ao seu tamanho; um outro adolescente vinha logo em seguida correndo e gritando que agora era a sua vez de “pilotar”, e esta foi mesmo a palavra usada por ele: pilotar. Note: a bike corria nos aros, sem os pneus. Os meninos desapareceram numa viela à esquerda. Embora eles não estivessem nem aí para o fato de a “magrela” ter ou não pneus e o que queriam era se divertir, eu só conseguia pensar que aquilo não era justo. Não era, não é e não será nunca!
Alguns cruzamentos mais à frente, alguns garotos pediam uns trocados aos motoristas que eram obrigados pelos semáforos coordenados (sempre me pareceram mais descoordenados) a parar naquele trecho. Alguns dos meninos vestiam camisetas rasgadas, outros nem isso tinham sobre o corpo. O mais bem-vestido, ironia sacana, vestia um blusão já todo gasto, com o logotipo nas costas de uma das mais conceituadas escolas particulares da região. Agasalho, talvez descartado num saco de lixo, surrupiado de algum varal ou pudesse ter sido ganho de alguma alma dadivosa, movida pelo espírito do bom velhinho, para quem acredita. Afinal era véspera de Natal e não creio que seja uma escolha feliz de vocabulário o “bom velhinho” para o menino Jesus.
A sabedoria popular ensina que “só peru sofre de véspera”. Não creio que seja dessa maneira. Qualquer um daqueles meninos poderia sofrer dano fatal na violência das cidades, de bicicleta, pedindo dinheiro no cruzamento, padecendo naquela friagem ou num sem-número de riscos que a rua oferece naquele último dia, antes do Natal. A sociedade tem muito que evoluir no trato de animais e, principalmente, no de gente!
COMENTÁRIOS
Denis
em 25/04/2025
O Natal é de fato uma época que normalmente são afloradas as reflexões e situações como as citadas.... mas essas mesmas situações perduram o ano todo em todas as datas comemorativas!!
Vera
em 18/04/2025
Sim,muitos trocam os humanos por animais.A capacidade de relacionamento é diminuída, quando o homem aprende a se relacionar com animais e não com humanos,gente.
Jailton
em 18/04/2025
Realmente nesta época temos despertado nossos sentimentos para situações que no dia a dia não temos esse costume....
Francisco
em 18/04/2025
Que linda crônica! Adoro festa de final de ano